Produtor rural se torna 'guardião' de castelo histórico no RS
Granja de Pedras Altas (RS) foi pioneira em inovações agropecuárias no Brasil
"O
que eu vou fazer com um castelo?" Essa foi a reação do produtor rural e
advogado Luiz Carlos Segat, de 57 anos, quando, em 2021, seu genro informou a
ele sobre a possibilidade de compra de uma propriedade de 360 hectares para o
plantio de soja. A área ficava em um município gaúcho de pouco
mais de 2.000 habitantes próximo à fronteira com o Uruguai, o que inclui um
trajeto de 20 quilômetros de estrada de terra.
Segat não sabia, mas a oferta o transformaria, tempos depois, no
guardião de um dos maiores patrimônios da história da agropecuária e da
política brasileira: o Castelo de Pedras Altas.
Castelo de Pedras Altas
“Meus filhos [Rafael, Gabriela e Kamilla, também advogados] tinham
vendido uma propriedade em São Francisco de Assis e buscavam comprar outra área
para plantar soja. Meu genro comentou sobre uma oferta em Pedras Altas, que
vinha com um castelo. Mas eu nem sabia que isso aqui existia. A imagem que
vinha na minha cabeça eram ruínas, um prédio abandonado, nada interessante”, conta
ele.
O prédio “nada
interessante” oferecido aos Segat foi a morada do político e diplomata Joaquim Francisco de
Assis Brasil (1857-1938). Inaugurado em 24 de junho de
1912, o edifício em granito rosa havia sido uma promessa de Assis Brasil à sua
segunda esposa, Lídia Pereira Felício de São Mamede, filha de um conde
português, de que construiria um castelo parecido com os que a ela visitava em
Portugal.
Com 44 cômodos, 12
lareiras e cinco banheiros, o castelo conta com mobília importada de Nova York
e Paris, obras de arte e uma biblioteca com 15 mil livros. Muitos deles são
extremamente raros, como os 22 volumes da primeira edição da primeira
enciclopédia do mundo, publicada por Diderot e D’Alembert, em 1751.
O prédio também marcou a história por ter sido o local em que ocorreu a
assinatura do tratado de paz que encerrou a Revolução de 1923, guerra civil
gaúcha em que os opositores do governador Borges de Medeiros (conhecidos como
maragatos) enfrentaram os governistas (chimangos) para tentar impedir o
mandatário de se reeleger pela quinta vez.
Embora tenha dedicado boa parte da vida à política e à diplomacia, Assis
Brasil buscou fazer de sua propriedade em Pedras Altas um modelo para o
desenvolvimeto da agropecuária brasileira. Apresentando-se em suas campanhas
políticas como “agricultor”, ele não aceitava que o Brasil da época fosse um
importador de alimentos, reclamação que deixou clara em seu livro Cultura dos
Campos, de 1897: “O feijão chegamos ao aperfeiçoamento de
receber do México e do Chile… Recebemos arroz da Índia, que nos fica do lado oposto
do planeta e não tem terras melhores do que as nossas. Um amigo meu, goiano,
revelou-me que é muito comum comer-se em Goiás banha americana! Tal situação é,
nos termos mais claros, a ruína econômica e política”.
Uma de suas grandes preocupações era provar que um pequeno pedaço de
terra poderia ser tão produtivo quanto uma grande propriedade se os
agricultores adotassem técnicas modernas e racionais. Ele acreditava, além
disso, que o produtor rural não precisava ser um “bruto”, isolado da busca por
conhecimento e cultura.
"Assis
Brasil sempre foi um homem da lida no campo. Ele continuamente juntou as
culturas, a do intelecto e a da terra", afirma Cláudia
Petry, professora da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da
Universidade de Passo Fundo (UPF). “Com sua curiosidade e vasta cultura, ele
efetivamente colocou em prática sua ideia de que o agricultor poderia arar a
terra de manhã e lerEuclides da Cunha pela tarde.”
Esse pensamento se manifesta na frase gravada nas entradas do castelo:
“Bem-vindo à mansão que encerra/A
dura lida e doce calma/O arado que educa a terra/O livro que amanha a alma”.
Quem foi Assis Brasil
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Joaquim Francisco de Assis Brasil
nasceu em São Gabriel (RS), em 29 de julho de 1857. Filho de estancieiros, foi
produtor rural, advogado, político, escritor e diplomata. Participou da criação
da Associação Pastoril de Pelotas (1898), a primeira associação agrícola do Rio
Grande do Sul.
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Na política, ele ajudou a fundar o
Partido Libertador e foi deputado na legislatura que criou a Constituição de
1891, a primeira da República. Diplomata na Argentina, Portugal e Estados
Unidos, Assis Brasil ajudou o Barão de Rio Branco a negociar, em nome do
governo brasileiro, a compra do Acre, que até 1903 pertencia à Bolívia.
·
Em 1923, liderou a oposição ao
governo de Borges de Medeiros no Rio Grande Sul, em uma guerra civil que durou
11 meses. Foi ministro da Agricultura entre 1930 e 1932, ano em que idealizou o
Código Eleitoral Brasileiro.
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Assis Brasil casou-se duas vezes e
teve 12 filhos. Ele morreu na noite da véspera de Natal de 1938, aos 80 anos,
no Castelo de Pedras Altas, onde foi sepultado.
Pioneiro agropecuário
Na Granja de Pedras Altas, Assis Brasil desenvolveu ações pioneiras,
como a adoção de variedades de milho mais produtivas e a introdução de novas
raças, como vacas jersey para produção de leite, gado devon e ovelhas karakul,
ideais para a extração de lã, assim como galinhas white wyandotte, que trouxe
dos Estados Unidos.
O diplomata manteve ainda uma importante criação de cavalos de corrida,
com reprodutores árabes e ingleses, e também introduziu novas espécies de
árvores, como o eucalipto, além de nogueiras-pecãs e videiras.
O mentor do castelo repassava a outros agricultores as informações que
colhia sobre oportunidades de geração de renda no campo e os conhecimentos que
obtinha com suas experiências práticas em Pedras Altas. Com isso, Assis Brasil
passou a ser considerado o patrono da agricultura gaúcha. Atualmente, em
homenagem à sua contribuição ao desenvolvimento agropecuário do Rio Grande do
Sul, o parque de eventos no município de Esteio, que sedia a Expointer, a maior
feira agropecuária do Estado, leva seu nome (Parque de Exposições Assis
Brasil).
Preservação do patrimônio histórico
Quando os Segat visitaram o castelo pela primeira vez para avaliar a
compra da propriedade, eles quase nada sabiam do histórico do local ou de seu
fundador. “Trabalhei na Avenida Assis Brasil, em Porto Alegre, e fui muitas
vezes no Parque Assis Brasil durante a Expointer, mas nunca tinha me perguntado
de onde vinha esse nome, qual era o motivo da homenagem”, conta Luiz Carlos.
À primeira vista, adquirir o castelo não parecia um bom negócio. O
prédio era tombado pelo patrimônio histórico desde 1999, mas sofria com anos de
abandono. Depois da morte de Assis Brasil, em 1938, e de sua esposa, em 1973, o
castelo e o seu entorno foram partilhados entre os 12 filhos. O último
inventário tinha 18 herdeiros, entre netos e bisnetos, que não chegavam a um
consenso sobre como conseguir recursos para preservar o prédio, que sofria com
infiltrações, umidade e corrosão.
A última descendente do fundador a viver no local deixou o prédio em
2017. Com isso, além das intempéries, o castelo passou a sofrer com ladrões e
vândalos, que roubaram principalmente obras de arte e objetos de metal. Os
herdeiros tomaram a decisão de vender a propriedade em 2019.
Segat afirma que o objetivo inicial da aquisição, que era o plantio de
soja, virou motivo secundário quando ele conheceu o histórico do local.
“Ocupamos metade da propriedade com soja, e a terra é rentável com a produção
de grãos. Mas entendemos que aquilo que temos na mão é muito maior, é um
patrimônio histórico e cultural que precisa ser preservado”, diz.
A família Assis Brasil aceitou a proposta de compra dos Segat em
fevereiro de 2022. Com o acordo, os irmãos Rafael, Gabriela e Kamilla
tornaram-se os proprietários da terra, enquanto o patriarca Luiz Carlos foi
instituído como presidente da Associação do Castelo de Pedras Altas, entidade
criada para buscar recursos para a restauração do imóvel.
A recuperação total das estruturas vai exigir cerca de R$ 10 milhões,
conta Segat. A associação já captou parte desses recursos via Lei de Incentivo
à Cultura (LIC).
A primeira etapa da revitalização já está em andamento. Os trabalhos
incluem a impermeabilização e a pavimentação da laje de cobertura do castelo e
dos locais de maior acesso. No andar superior, os operários dedicam-se à
remoção dos revestimentos internos e à fixação dos novos, além da instalação da
estrutura elétrica e do restauro da pintura das janelas metálicas.
Atualmente, os novos proprietários já promovem o turismo no local, por
meio do agendamento de visitas pela página
do castelo no Instagram. A longo prazo, os Segat pretendem criar
um museu no imóvel, uma iniciativa que vai valorizar não só o castelo e seu
patrimônio cultural como também a paisagem local e o histórico agrário da
propriedade, acredita o patriarca. “Queremos resgatar ao máximo o ambiente da
granja de Pedras Altas no tempo em que Assis Brasil vivia aqui”, explica.
O novo guardião do castelo já cumpriu parte desse objetivo quando ele e
a família reintroduziram na propriedade os bovinos devon, que o fundador do
castelo trouxe para o Brasil no início do século passado. Hoje, o local já
conta com cerca de 300 cabeças da raça.
Visitação
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As visitas ao Castelo de Pedras Altas
devem ser agendadas previamente na página @castelopedrasaltas, no
Instagram, que informa quais as datas em que a entrada na propriedade estará
liberada.
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No interior do castelo, pode-se
visitar apenas o primeiro andar, onde ficam a biblioteca, o salão principal e a
sala onde ocorreu a assinatura do Tratado de Paz de Pedras Altas, em 1923. O
restante do passeio é pela área externa do prédio.
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Existem dois turnos de visitas, das
9h às 12h e das 14h às 17h.
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A entrada custa R$ 100. Para garantir
a reserva, é preciso fazer pagamento antecipado, via Pix.
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