Professora agredida em SC faz carta à ministra Damares pedindo respeito
Marcia Friggi: 'Desça dos seus delírios fakes, Senhora Ministra, pise no chão e encare a realidade'
A professora de português Marcia Friggi, que foi violentamente agredida por um aluno em 2017 num colégio municipal de Indaial
(SC), divulgou uma carta aberta a Damares Alves, ministra da Mulher, Família e
Direitos Humanos.
Nela, a professora diz que tem analisado os vídeos que
circulam na internet com depoimentos da ministra sobre os professores
brasileiros e pede respeito: "como professora, sinto-me profundamente
ofendida e humilhada. Venho percebendo seu empenho em colocar a sociedade
contra a educação brasileira e seu magistério".
"A senhora, nos seus ataques, sempre focou a educação e
o magistério brasileiro, esse foco não é inocente, é estratégico. Desmoralizar,
humilhar, deslegitimar e demonizar os professores, colocar a sociedade contra
nós e contra a educação, só nos enfraquece ainda mais. Como se já não bastassem
nossos baixos salários, a falta de condições estruturais, a ausência e a falta
de incentivo a bons cursos de formação continuada", disse.
Marcia ainda afirmou: "Venho, também, oferecer-lhe um
conselho: desça dos seus delírios fakes, Senhora Ministra, pise no chão e
encare a realidade. Porte-se com a seriedade que a importância do seu cargo
exige. Deixe assuntos fúteis como cor de roupa adequada para seus colóquios no
púlpito da igreja", referindo-se à declaração de Damares sobre menino ter
que vestir azul e menina vestir rosa.
Leia abaixo a carta completa:
CARTA ABERTA A DAMARES ALVES, EXCELENTÍSSIMA MINISTRA DA
MULHER, FAMÍLIA E DIREITOS HUMANOS
(De autoria de Marcia Friggi, poeta, professora de Língua
Portuguesa e Literatura do Estado de Santa Catarina)
Senhora Ministra,
Ontem eu também fiz brincadeiras em decorrência do seu
polêmico vídeo. Brincadeiras e deboches também são formas de resistência. Sua
postura e suas falas, entretanto, exigem uma análise séria e demandam
respostas.
Há tempo observo seus vídeos que circulam na Internet e,
como professora, sinto-me profundamente ofendida e humilhada. Venho percebendo
seu empenho em colocar a sociedade contra a educação brasileira e seu
magistério.
Para ilustrar o que afirmo, além dos links de dois vídeos
que seguem abaixo deste texto, vou citar algumas das suas afirmações que me têm
deixado triste e profundamente revoltada.
Sobre o famoso “Kit Gay”, Senhora Ministra, que jamais
existiu e a senhora sabe disso, tratava-se na verdade, do “Projeto escola sem
homofobia”, que seria voltado para os professores, não para os alunos. Nesse
projeto, sequer havia o livro “Aparelho sexual e Cia”, que a senhora cita.
Esse projeto foi vetado pelo governo federal em 2011, devido
ao fato de ter sido alvo de críticas dos setores conservadores, dos quais a
senhora faz parte.
Aproveito para alertar que muitas das escolas brasileiras
sequer possuem bibliotecas, e a minha é uma delas. O que temos, no momento, é
uma Kombi doada pela comunidade escolar e transformada em biblioteca através de
um projeto meu.
Frequentemente, a senhora usa suas falas, nos púlpitos das
suas igrejas, para denegrir o trabalho dos professores e para nos colocar como
responsáveis pelos problemas de uma geração, inclusive nos atacando como
agentes de “perversão” e “doutrinação”.
Em um dos seus vídeos, a senhora menciona um material que
supostamente faria apologia ao sexo com animais.
Senhora Ministra, talvez a senhora não conheça muito bem a
regulamentação do exercício do magistério. Nós, professores, somos fiscalizados
pelos nossos superiores: coordenação, direção e secretarias de educação.
Os materiais que utilizamos, os livros escolhidos, e até
mesmo as nossas provas, são analisadas e aprovadas pelas instâncias superiores
antes que cheguem aos os alunos.
Nesses vídeos, a senhora também se refere a um “suposto
projeto” de 2004 e com tom irônico a senhora fala: “Não posso falar o nome da
prefeita, não posso falar que ela é do PT, e também não posso falar que foi
esposa do Suplicy, mas juntamente com o grupo GTPOS, ela gastou mais de dois
milhões de reais num programa”. Programa esse, ao qual a senhora afirma ter
sido atribuída a função de promover, nas creches, o incentivo a ereção e
masturbação de bebês de sete meses.
Com essa sua fala, a senhora coloca os pedagogos e pedagogas
que trabalham com a educação infantil na condição de criminosos, e mais do que
isso, na condição de doentes pervertidos.
Meus colegas pedagogos, senhora ministra, que tão
atenciosamente cuidam das nossas crianças e, neste momento, abro um parêntese
para lembrar a heróica professora Helley Abreu Batista que morreu, com 90% do
corpo queimado, após retirar seus alunos de um salão em chamas e de lutar
contra o vigilante que ateou fogo à creche, em Janaúba, norte de Minas Gerais,
em 2017.
Meus colegas pedagogos, senhora ministra, jamais cometeriam
esse crime, nem mesmo sob tortura.
A senhora, nos seus ataques, sempre focou a educação e o
magistério brasileiro, esse foco não é inocente, é estratégico.
Desmoralizar, humilhar, deslegitimar e demonizar os
professores, colocar a sociedade contra nós e contra a educação, só nos
enfraquece ainda mais. Como se já não bastassem nossos baixos salários, a falta
de condições estruturais, a ausência e a falta de incentivo a bons cursos de
formação continuada.
Como se já não bastasse o desrespeito e a violência com que
somos tratados em nossos atos de protesto, paralização e greve, enquanto
políticos protegidos e aquartelados debocham das humilhações das quais somos
vítimas.
Ao nos enfraquecer, a senhora enfraquece a educação e isso
lhe é extremamente útil e providencial. Um povo sem acesso à educação de
qualidade é muito mais fácil de “doutrinar”, de transformar em “ovelhas”, em
“inocentes úteis” e nós sabemos muito bem onde verdadeiramente vem ocorrendo a
“doutrinação” no Brasil e sob que circunstâncias e métodos.
Vou falar brevemente, Senhora Ministra, sobre o que fazem os
professores para muito além das suas atribuições.
Somos nós que, na maioria das vezes, descobrimos quando um
aluno possui deficiência visual, porque na sala de aula temos parâmetros de
comparação. O aluno está sentado na mesma distância do quadro em que estão seus
colegas, mas franze a testa, comprime os olhos.
Somos nós que chamamos os pais e alertamos.
Muitas vezes, Senhora Ministra, somos nós que percebemos um
problema mais grave. Nossos olhos treinados e experientes conseguem detectar o
aluno ou aluna que se isola, nega-se a realizar trabalho em grupo, não
participa do recreio, tende a ficar no mesmo lugar e realizar movimentos
repetitivos com o corpo.
Somos nós que alertamos os pais depois da avaliação médica,
enquanto a família vive o luto de um diagnóstico de autismo, por exemplo, nós
professores seguimos trabalhando métodos e estratégias para incluir esse aluno
da melhor forma possível.
Somos nós, Senhora Ministra, que muitas vezes percebemos a
automutilação em alguns alunos e ela não se deve ao nosso trabalho de
“doutrinação” como a senhora tenta afirmar, ao dizer que confundimos nossas
crianças com a “ideologia de gênero”.
Os adolescentes que chegaram até mim com automutilação,
viviam um cotidiano familiar desestruturado.
Desestruturado no seio da “família tradicional” que a
senhora tanto defende.
O que a senhora propaga e demoniza como sendo “ideologia de
gênero”, na realidade do chão da sala de aula, Senhora Ministra, é a exigência
do respeito, é o cuidado para com todos os alunos, é a luta contra o bullyng
que pode destruir emocionalmente um aluno e até levá-lo ao suicídio, é a
educação contra a cultura do estupro e do machismo.
Nós enfrentamos salas de aulas superlotadas, lidamos com as
particularidades de cada aluno e incentivamos o respeito para com todos, sem o
qual não seria possível ministrar uma aula.
Somos nós, Senhora Ministra, que percebemos pela postura
corporal, pelo silêncio, pelo olhar triste de quem suplica por socorro, quando
uma criança ou adolescente é vítima de violência sexual, violência essa
normalmente sofrida no seio da “família tradicional”.
Somos nós, Senhora Ministra, que conversamos com essa criança,
que ouvimos o relato do seu sofrimento, que tomamos as providências, que
chamamos o conselho tutelar, e somos nós que acompanharemos essa criança ou
adolescente com atenção e cuidado redobrados.
Finalmente, Senhora Ministra, são inúmeras as nossas
atribuições, as quais nos entregamos com amor e seriedade, respeito para com
nosso diploma, para com nosso juramento e para com a instrução conquistada
através da disciplina, do estudo e da leitura que, certamente, não foi
adquirida no espaço do whatsapp.
Somos nós, professores, que olhamos, cuidamos, educamos,
instruímos e ensinamos as crianças e jovens deste país.
Somos nós que protegemos essas crianças e jovens quando a
família falha e quando o Estado falha.
Esta minha carta aberta tem dois objetivos: pedir-lhe mais
respeito para com a classe do magistério.
Venho, também, oferecer-lhe um conselho: desça dos seus
delírios fakes, Senhora Ministra, pise no chão e encare a realidade.
Porte-se com a seriedade que a importância do seu cargo
exige. Deixe assuntos fúteis como cor de roupa adequada para seus colóquios no
púlpito da igreja.
No exercício da sua atual função como ministra, olhe para o
magistério brasileiro com olhos da verdade. Olhe pelos quase seis milhões de
crianças sem o nome do pai nos seu registro. Encare a quinta maior taxa de
feminicídio no mundo e que vem aumentando assustadoramente, alimentada pela
cultura do machismo e da violência.
Olhe para os milhões de mulheres que, longe da família
tradicional, criam seus filhos sozinhas e com dignidade. Olhe para as crianças
e jovens que estão nas ruas, Senhora Ministra.
Lembre-se que essas crianças não se perdem na rua, foram
perdidas dentro de casa, no seio das famílias tradicionais ou não e
negligenciadas pelo Estado, as ruas apenas as adotam.
Olhe para os LGBTs e às violências que têm sido vítimas. O
Brasil é o país quem mais mata LGBTs no mundo e temos visto esse número
aumentar, incentivado pela cultura da intolerância.
A senhora deve estar se perguntando: “Quem é essa
professorinha petulante que me escreve essa carta aberta?”
Vou facilitar para a senhora, vou me apresentar.
Sou Marcia Friggi, poeta e professora de Língua Portuguesa e
Literatura do Estado de Santa Catarina. Exerço meu cargo após ter sido aprovada
em concurso público, submetida a rigorosos exames médicos periciais, além de
ter passado pelos três anos de estágio probatório.
Sou aquela professora que foi violentamente agredida por um
aluno em 2017, caso que teve repercussão nacional e internacional.
Sou a professora que, após violência física, sofreu
linchamento virtual por parte dos que comungam das suas ideias.
A professora que teve sua imagem com o rosto ensanguentado,
usada sem autorização, pelos mesmos que me atacaram virtualmente, para promover
a campanha política eleitoral do seu candidato.
Naquele período, visitei o inferno e sobrevivi. Sobrevivi à
depressão, à fobia social, a crises de ansiedade, à insônia e à vontade de
morrer. A tudo isso, talvez se deva a minha ausência de medo. Eu não tenho medo
porque sou uma sobrevivente, porque na minha casa não há uma agulha sequer que
não tenha sido comprada com o suor do trabalho honesto.
Não tenho medo porque não ocupo e nunca ocupei cargo
comissionado. Não tenho medo porque nunca dependi de favores políticos. Não
tenho medo porque pelas minhas mãos jamais passou dinheiro público.
Finalmente, Senhora Ministra, não tenho medo porque se ao
seu lado está o governo atual e suas “ovelhas”, do meu está o mundo. Do meu
lado está um mundo inteiro que não aceita mais retrocesso. Um mundo que deseja
respeito para com todas as pessoas. Um mundo que não aceita mais discriminação,
intolerância, preconceito, machismo, homofobia, xenofobia. Um mundo que deseja
que uma mulher possa terminar um relacionamento sem ser agredida ou morta.
Um mundo que respeita a vida e a natureza. Um mundo que se
pretende mais humano, justo e igualitário.
Não tenho medo, Senhora Ministra, porque minha militância
pelas causas que considero justas sempre foram exercidas nas ruas e no espaço
virtual, nunca na sala de aula.
Não tenho medo, Senhora Ministra, porque sou adepta da paz e
minha única arma é a palavra e é dela que venho me utilizando como um
instrumento de amor à vida, à liberdade, à arte e à resistência.
Já participei de algumas coletâneas como escritora, minha
última participação foi no “Mulherio das Letras”, o que muito me honra.
Neste ano de 2019, lançarei meu primeiro livro de poesia, no
qual estão muitos dos meus poemas de cunho social e resistência. Está também,
entre meus projetos mais importantes, o livro sobre “denúncia dos flagelos que
sofre o magistério brasileiro”, o qual percebo de suma importância,
considerando os constantes ataques e humilhações a que somos submetidos.
Ainda nos veremos, Senhora Ministra, nas batalhas pacíficas
da vida, das quais eu jamais fugi.
Post Scriptum:
Desisti de colocar os links aqui, pois os vídeos vêm junto
com os links. Eles estão no YouTube.
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