IFA: o que é o ingrediente que falta para as vacinas e por que o Brasil ainda não o produz?
Fabricação da matéria-prima
dos imunizantes no Brasil permitirá a produção nacional de doses para dar
prosseguimento à campanha de imunização
Em meio à escassez de seringas,
agulhas e oxigênio,
o Brasil enfrenta agora a falta do ingrediente farmacêutico ativo (IFA). Apesar
do nome complicado, nada mais é do que a substância que faz uma vacina proteger
as pessoas – fabricá-la por aqui permitirá ao país produzir doses a todo o
vapor e deslanchar de vez a campanha de imunização contra o coronavírus.
O IFA é o ingrediente que
provoca a resposta imunológica no organismo das pessoas para que, quando o
corpo entrar em contato com o vírus selvagem, o indivíduo não adoeça
gravemente. Na prática, é a matéria-prima da vacina, assim como a laranja é
para o suco, a cevada para a cerveja e a uva para o vinho: sem IFA, a injeção é
só uma mistura de líquidos que não servem para proteger ninguém (veja abaixo os
ingredientes de uma vacina).
— Se fizéssemos um suco de
laranja, o IFA seria o concentrado de laranja. É o princípio ativo da vacina
que desencadeia a imunização. Quando o IFA vem pronto, a gente segue o passo a
passo de produzir a vacina. O que não sabemos, ainda, é como produzir o IFA do
zero para juntá-lo com o que é necessário para fazer a vacinação — resume a
biomédica Mellanie Fontes-Dutra, doutora em Neurociência e coordenadora da Rede
Análise Covid-19.
Cada laboratório desenvolveu
uma receita diferente para seu IFA – portanto, a matéria-prima da vacina de
Oxford/AstraZeneca, com parceria no Brasil com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
não é a mesma daquela usada para a CoronaVac,
produzida pelo Instituto Butantan. Nem mesmo vacinas com tecnologias iguais de
fabricação, como a Pfizer e a Moderna, que usam RNA mensageiro, têm IFA
parecido.
No caso da vacina de Oxford,
que usa a tecnologia de vetor viral, o IFA é composto por adenovírus vivo e
manipulado para não gerar risco às pessoas. Já o IFA da CoronaVac é composto
pelo Sars-Cov2 “morto” e usado para estimular a resposta do organismo. No momento,
ambos são importados da China.
— O IFA da vacina da Fiocruz
é um adenovírus que causa gripe em chimpanzé e nem serve para a célula humana.
Você tira o miolo do vírus e a capacidade dele de ficar se replicando e coloca
um pedacinho do código genético do Sars-Cov2 que não cause doença, mas que seja
suficiente para o sistema imunológico montar a defesa — explica a imunologista
Viviane Boaventura, membro da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI),
pesquisadora da Fiocruz e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Transferência de tecnologia
O processo de transferência
de tecnologia firmado com os laboratórios AstraZeneca e Sinovac para que o
Brasil produza vacinas por conta própria – e consiga fabricar doses em um ritmo
suficiente para a campanha de vacinação dar certo – é dividido em três etapas.
Na primeira, importamos as
vacinas prontas e apenas envasamos e rotulamos as injeções para a distribuição.
É o caso das 6 milhões de doses da CoronaVac que circulam nesta semana no
Brasil e das 2 milhões de unidades da vacina de Oxford produzidas no Instituto
Serum que ainda não foram enviadas pela Índia.
Na segunda etapa, Butantan e
Fiocruz importam o IFA pronto para, no Brasil, uni-lo a outros ingredientes e
envasar as doses. É nessa fase que o processo está empacado agora.
O Butantan já recebeu lotes
de IFA e conseguiu finalizar a produção de 4,8 milhões de doses da CoronaVac,
para as quais pediu à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
autorização de uso emergencial. Mas a entrega das 46 milhões de doses aos
brasileiros, firmadas em contrato com o Ministério da Saúde, está ameaçada
porque a matéria-prima, apesar de ter sido liberada pela Sinovac, aguarda o
aval do governo da China.
Em entrevista ao programa
Timeline, da Rádio Gaúcha, o coordenador executivo do Centro de Contingência da
Covid-19 em São Paulo, João Gabbardo dos Reis, afirmou nesta quarta-feira (20)
que a expectativa é de que todas
as etapas da vacina sejam realizadas no Brasil até o fim do semestre.
— Vamos aprender com
eles (a empresa chinesa) como se produz. Isso deve ocorrer no
Butantan no final deste semestre. A partir daí, não dependeremos mais da
importação desse produto. Isso vai ser feito aqui no Brasil. Essa transferência
de tecnologia ocorre desde o início, é um processo mais demorado, exige uma
aprendizagem dessa nova tecnologia — projeta Gabbardo.
A Fiocruz sequer recebeu o
IFA do laboratório chinês WuXi, contratado pela AstraZeneca para unir os
ingredientes e produzir a vacina de Oxford: a previsão era de chegada em
dezembro, depois passou para 12 de janeiro e, agora, espera-se que chegue em 23
de janeiro, como estipulado no contrato. De toda forma, o calendário de
produção, previsto para iniciar nesta quarta-feira a fim de entregar os
primeiros lotes da vacina de Oxford em fevereiro, já caducou, e a Fiocruz adiou
a distribuição das primeiras doses para março.
Na terceira e última etapa,
Butantan e Fiocruz passarão a fabricar o IFA após a transferência de
tecnologia, e não será mais preciso comprar o ingrediente no Exterior.
— Aprenderemos quais
equipamentos usar, quais são os processos, quais as etapas dos processos, qual
é a receita da vacina, como cultivar o vírus, como inativar o vírus para a
CoronaVac, qual a quantidade de vírus que precisa pôr em uma concentração. A
transferência de tecnologia abrange esses pontos todos — diz a enfermeira Mayra
Moura, mestre em Tecnologia de Imunobiológicos pela Fiocruz e diretora da
Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
— A transferência de
tecnologia é para não começarmos a produção da vacina do zero. Alguém descobriu
a vacina, e nós estamos comprando o know-how dessas indústrias. Todo mundo
ganha porque quem vende garante uma quantidade de venda absurda e a longo
prazo, e quem compra, adquire um conhecimento e forma pessoas. Até agosto e
setembro, a gente dependerá de importar o IFA para as duas vacinas. Hoje, com a
situação política atual, isso é um problema, mas não deveria ser. Em 15 anos de
carreira, nunca vi termos problema porque o IFA vinha de fora. Butantan e
Bio-Manguinhos trabalham há anos com transferência de tecnologia — observa
Mayra.
Para fabricar essa
matéria-prima, as duas instituições precisam ampliar suas fábricas. A Fiocruz
investiu US$ 15 milhões no Laboratório de Bio-Manguinhos, no Rio de Janeiro. Já
o Butantan deve terminar a ampliação no segundo semestre. O problema do
Butantan é ter já começado a produzir doses com IFA importado, mas deter
ingrediente suficiente apenas para assegurar a produção em janeiro.
Questão política
As negociações com a China
estão empacadas e são afetadas pela relação ruim do governo Jair
Bolsonaro com o país asiático. Para azeitar a negociação, o
presidente da Câmara, Rodrigo
Maia, se reuniu com o embaixador Yang Wanming nesta quarta-feira (20).
Em entrevista à GloboNews, o parlamentar relatou que o discurso do diplomata é
de que o entrave é técnico, não político.
No entanto, parlamentares,
governadores e analistas de relações internacionais afirmam que o obstáculo é
efeito das atitudes grosseiras contra a China conduzidas pelo governo, pelo
deputado Eduardo Bolsonaro, presidente da comissão de Relações
Exteriores da Câmara
dos Deputados, e pelo chanceler Ernesto
Araújo.
O Fórum de Governadores,
encabeçado pelo governador do Piauí, Wellington Dias, protocolou
nesta quarta (20) ofício ao presidente Bolsonaro solicitando um
diálogo diplomático entre o governo brasileiro e China e Índia para assegurar a
continuidade da campanha de vacinação no Brasil. O vice-presidente Hamilton
Mourão, em declaração também nesta quarta, atribuiu o entrave à
"geopolítica da vacina" e aos interesses chineses e indianos na
comercialização de insumos.
Quais os principais
ingredientes de uma vacina?
Antígeno (IFA)
É a substância que irá provocar a resposta imunológica do organismo para
treiná-lo a lidar com o vírus real. Cada vacina tem uma tecnologia que desenha
um antígeno (gatilho biológico) diferente para despertar a produção de
anticorpos. É, na prática, o ingrediente farmacêutico ativo (IFA).
Adjuvantes
Substâncias adicionadas para ajudar o sistema imunológico a reconhecer o
antígeno.
Conservantes
Substâncias que previnem, na vacina, o crescimento de organismos indesejáveis,
como fungos e bactérias.
Estabilizantes
Substâncias
que garantem que o antígeno fique estável e mantenha a qualidade.
Diluente
Água ou soro fisiológico para tornar a vacina líquida e injetável.
Agentes de inativação
Em vacinas criadas com a tecnologia de vírus inativado, como a CoronaVac, os
agentes de inativação “matam” o Sars-Cov2 para que ele não traga risco para o
organismo, mas consiga, com a “carcaça” do vírus, despertar a resposta
imunológica do organismo.
Fonte: Leandro Torres,
enfermeiro especialista em imunização e membro da União Pró-Vacina; Mayra
Moura, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
GAUCHA ZH 21/01/2021
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